segunda-feira, 30 de março de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 6

Ao redor de Jaime Cortesão
II – História e epopeia
por Pedro Martins


Retomemos o convívio do triunvirato insigne. Se Pascoaes foi o poeta da Renascença Portuguesa, e Leonardo o seu filósofo, nela terá sido Cortesão o historiador. Antevejo a perplexidade que se apodera do leitor. Nos anos que, de imediato, antecederam a fundação do movimento portuense; ou nos subsequentes, primordiais, em que tal movimento fulgurou – aqueles em que, na verdade, Jaime Cortesão ali desenvolveu intensa militância –, a sua produção literária foi, primeiro, poética; e, depois, teatral; mas não propriamente historiográfica. Há ainda, nesse período, um livro de contos, D’Aquém e d’Além Morte, editado precisamente pela Renascença em 1913, e porventura insuficiente, por isolado, para que se lhe possa fazer corresponder um veio saliente no corpus bibliográfico do autor de Divina Voluptuosidade. Dito isto, forçoso será concluir que as primícias dos seus estudos históricos coincidem sensivelmente com o dealbar do período em que o iremos encontrar à frente da Biblioteca Nacional (1919-1927), ou pontificando na direcção da revista Seara Nova, criada em Outubro de 1921.

No entanto, se levarmos primeiro em conta que a História – pelo menos a de Portugal, aquela a cujo estudo Cortesão, incansável, se devotou; e, por isso, a que, na realidade, interessa para o caso – passou por ser, a seus olhos, a epopeia de todo um povo; e dermos depois a atenção devida ao que escreveu em títulos marcantes como o livro de poesia A Morte da Águia (1910), ou as peças teatrais, obviamente inspiradas em acontecimentos históricos, sobre O Infante de Sagres (1916) e Egas Moniz (1918), perceberemos que a vocação historiográfica do grande vulto renascentista despontou bem cedo. O primeiro destes livros, poema heróico em VII cantos, complexo simbólico de mitos e alegorias, dá bem a nota do épico tal como Álvaro Ribeiro o há-de definir, em carta escrita a José Régio em 1928: pela “exaltação da liberdade interior”, pela “conquista dos valores do Espírito”. O segundo – e ao dizer-se isto já tudo fica dito – é simplesmente um drama épico em IV actos. O terceiro, remontando aos tempos heróicos da fundação da nacionalidade, encerra notória apologia da observância da honra como forma de superação humana.
Não é fácil dizer com rigor quando começa a definir-se aquela vocação. De resto, também não é muito importante. Com base em testemunhos tardios, e levemente contraditórios, do próprio Cortesão, José Manuel Garcia mostra-nos como é indecisa a consciência de uma génese que, por força, oscilará entre as suas atitudes historiográficas no seio da Renascença Portuguesa e a altura em que escreveu O Infante de Sagres. As duas balizas pertencem à mesma época e, o que é mais, ao mesmo movimento íntimo. Mas eleger o primeiro marco deste breve período de quatro anos será, talvez, mais curial. Com efeito, logo em 1912, Jaime Cortesão, que era médico, abandonou a prática clínica para se dedicar ao ensino da História e da Literatura, no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto. Nesse mesmo ano, no âmbito da Universidade Popular desta cidade (que fora inaugurada a 9 de Junho), iniciou, em Novembro, a leccionação um Curso de História Pátria, cujos esquemas sumários, reveladores, na opinião de Alfredo Ribeiro dos Santos, da “originalidade” daquele ensino, vieram publicados no quinzenário A Vida Portuguesa, que Cortesão aliás dirigia.
Note-se, porém, que, neste homem de acção, a teoria, de alguma sorte, precedera a prática: em Setembro daquele ano haviam sido as páginas de A Águia a acolher o artigo "A Renascença Portuguesa e o ensino da História Pátria", no qual o notável ideólogo republicano fia a formação dos portugueses do ensino da história pátria na escola primária, num modo tal que os feitos heróicos das grandes figuras não obliterem “o esforço individual ainda o dos mais humildes” (mais tarde, Cortesão dará acrescida importância à criação colectiva e às solicitações de carácter económico, sem, todavia, depreciar as personalidades representativas e as influências culturais e religiosas), e de forma a que “a admiração das nossas empresas heróicas” jamais possa obnubilar o “conhecimento das nossas desgraças, fraquezas e aviltamentos”. Nestas laudas, surpreendemos já a extraordinária probidade do historiador a haver, que, como poucos, soube guardar o sentido da verdade e da justiça, num sereno exercício de equilíbrio e comedimento só ao alcance dos maiores. E o democrata, que, sem pejo, escrevia Nação com letra grande, não receia proclamar-se patriota: “Aqui falámos de patriotismo. Não vá sem resposta algum reparo de má fé. Aquele que pretendemos desenvolver nos jovens portugueses é o patriotismo humanitário, o que dê à nossa Raça a poderosa actividade criadora capaz de contribuir para a civilização da Humanidade.”
Convenhamos que nada poderia ser mais fiel ao espírito da Renascença Portuguesa. O que, logo em 1912, Cortesão, prospectivamente, pretende projectar no futuro de Portugal, é o legado glorioso do país de antanho, de que, décadas depois, nos dará admirável síntese em Os Factores Democráticos na Formação de Portugal e n’O Humanismo Universalista dos Portugueses, díptico que, num certo sentido, remata a sua obra. Seja como for, no labor renascentista de Jaime Cortesão perpassa já nítida propensão para a escrita da História. O que ali está em germe, ou em potência, mal chega a insinuar-se em acto. Mas a verdade é que há algo de orgânico neste lento despertar do escritor que vai passar a oficiar em nome de Clio.
Como sempre, Álvaro Ribeiro, com a sua lucidez penetrante, viu antes dos outros e melhor do que ninguém. Mas, uma vez mais, não disse tudo. Confinando-se à alusão, que era a pedra de toque do seu magistério, pôde o filósofo sugerir que o desenvolvimento da obra de Cortesão se cumpriu, até à perfeição, de acordo com uma lei inexorável que lhe garante a perenidade e a grandeza. Para tanto, ter-lhe-á bastado consignar o seguinte nas Memórias de um Letrado: “Poeta, dramaturgo e historiador, cuja tríade ainda não foi colocada na distância e na perspectiva que o futuro valorizará, Jaime Cortesão deixou-nos uma obra notabilíssima para a melhor compreensão do homem português e do povo português, porque seus estudos se caracterizam pelo mérito de conciliar a tradição, a ordem e o progresso.”
Compreende-se melhor o alto apreço que Álvaro Ribeiro manifesta pela obra de Jaime Cortesão quando se tem presente que o filósofo atribui ao romance da época fáustica a função que outrora coube ao poema épico. Ficamo-lo a saber pela carta, já referida, que enviou a José Régio. E algo daquilo que o filósofo da razão animada, pela análise dos géneros literários, acabou por expender no estudo da literatura do poeta da Sarça Ardente revela-se afinal proveitoso a quem procurar inteligir o sentido último da obra do historiador. É que, consoante nos mostra Álvaro Ribeiro, a poesia e o teatro são, respectivamente, a potência e o acto do movimento que só no romance encontra a sua perfeição. Álvaro Ribeiro não o diz por este modo, mas quer, por certo, significá-lo, quando refere a poesia à estética do tempo e o teatro à estética do espaço, fazendo-lhes corresponder, no plano das idades da alma, respectivamente a adolescência e a maturidade. Já o romance, atinente à estética do movimento, dirá respeito à velhice. Então se vê como este último género preenche a função da epopeia, do mesmo modo que nos dois primeiros se cumprem a lírica e o drama.
Está bem de ver que Jaime Cortesão não escreveu, em toda a sua vida, qualquer romance. Mas, reconhecendo o destino divino de Portugal no movimento histórico da nação, soube adunar a narrativa tópica e crónica da pátria à elevada significação finalista que é a da épica. Cortesão vê na história de Portugal a história de “um povo, todo ele herói de uma epopeia”, que é “uma criação livre do espírito”. Talvez o seu génio de escritor tenha de ser aferido pelo modo como, ao culminar a sua obra de síntese com um tentame hermenêutico da Peregrinação e d’Os Lusíadas (sem deixar de considerar certos antecedentes líricos da epopeia), ele nos mostra a ascensão da história, pelo caminho da literatura, ao superior plano de um pensamento em que se vislumbram já alguns dos temas, teses e teoremas da obra de Álvaro Ribeiro, como sejam: 1) a existência de uma filosofia portuguesa implícita, mas original, e até precursora no contexto universal, vertida em obras de arte que requerem agudeza de leitura ao intérprete; 2) a humanização da natureza como via antropológica que situa o homem, anjo e demónio, a meio caminho entre os mundos infernos e supernos, o mesmo será dizer, o amor da Natureza e o amor da mulher como formas de ascese e conhecimento; 3) a criação poética como experiência mística onde o êxtase e a revelação divina derivam da inspiração; 4) a revalorização de Aristóteles na leitura da obra camonina, prenunciadora de uma hermenêutica que aponta ao intermediário imaginal, como a que Álvaro Ribeiro esboçou na Ontologia dos Valores Poéticos e António Telmo tem vindo a desenvolver, desde O Segredo dos Lusíadas e o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões até ao recente escrito sobre A Identidade Religiosa de Luís de Camões, publicado no primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante; 5) e um paracletismo, agraciante e congraçante, pelo qual se desvanecem as fronteiras entre o pensamento e a vida.